Introdução

A concepção da palavra cultura na contemporaneidade segundo Chauí (2008, p. 55) começa a receber valores e significados de importância centrais que podem ser compreendidos a partir de sua dimensão de civilização e progresso, dos processos sociais ou simplesmente como um estilo de vida.

Na intepretação de Geertz (2008, p. 4), a cultura é assumida não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura de significado. Portanto, podemos defender, por este prisma antropológico, que uma cultura fornece os conhecimentos, os valores, e símbolos, que orientam e guiam as vidas humanas (Morin, 2003, p. 48).

Ao aplicar esta nova compreensão e noção de cultura, e ao sair do viés restrito e limitado que é o sociológico, que em sua análise abarca uniformemente os acontecimentos de um tempo histórico restringindo-se somente aos grupos, camadas ou círculos sociais, como passando para um processo de pensamento antropológico de um conceito da cultura como um conjunto de saberes-fazeres humanos, negando uma cultura de classe dominante.

Dessa forma, na gestão do ex-ministro Gilberto Gil no período (2003-2008) a frente do Ministério da Cultura (MinC) há uma nova concepção de entendimento da cultura nacional que, valoriza o pluralismo e a diversidade que em si existem na sociedade brasileira, praticadas por seus “saberes-fazeres” dessa forma e, a implementação de uma política cultural nacional com o enfoque antropológico como define Botelho (2001) que traduz esta nova compreensão de uma política pública (public policy) voltada para a cultura:

A dimensão antropológica pode se dar através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade. A partir dessas atribuições conceituais será o delimitador e a sua definição como grande executor de alcance das políticas e ações das administrações públicas. Por isso a diferenciação conceitual dessa nova escolha é uma grande determinante para compreender o tipo e o caráter da ação governamental e sua abrangência de atuação, escolha e definição de prioridades (Botelho, 2001, p. 74).

Ao potencializa a dimensão antropológica como forma de desenvolvimento das capacidades e estruturas das relações interpessoais, buscou-se também nortear um mecanismo base essas ações, pensando na economia da cultura com a finalidade de potencializar as interações já desenvolvidas. Neste sentido, o MinC tem promovido debates que buscam norteadores para o financiamento público a partir das discussões presentes nas Conferências Nacionais de Cultura.2 Através do esforço institucional para a realização de uma política cultural, consequentemente no ano de 2012 através da Emenda Constitucional nº 71/2012, foi aprovado o Sistema Nacional de Cultura que tem como um de seus objetivos a adesão dos municípios ao Sistema Nacional de Cultura em todo território nacional.

O Sistema Nacional de Cultura (SNC) é o principal instrumento para que o MinC possa desenvolver políticas culturais nos estados e nas cidades, com a participação da sociedade civil. A finalidade da implementação do SNC é a criação de uma política nacional de financiamento público à cultura por meio da União, via modelo de transferências de recursos do governo federal para estados e municípios - e aqui cabe ressaltar que é fundamental que a aprovação da PEC nº 150/20033 seja aprovada pois garantirá o repasse que dos 2,0% destinados à União, 1% fique com o governo federal e 1% seja repassado aos entes federados, e 0,5% para os estados e outros 0,5% para os municípios, o que viabiliza o processo de repasses fundo a fundo, mecanismo fundamental do SNC.

Ainda assim, para sua estruturação e implementação enquanto uma política cultural nacional, os elementos obrigatórios exigem que os estados e os municípios tenham adesão ao SNC e devem ter como elementos constitutivos do sistema: a) Conselhos de Políticas Culturais - (policymakers) como integrante da estrutura básica do órgão da administração pública e que atuem na formulação de estratégias e no controle da execução da política cultural. b) As Conferências de Cultura - (policy community) se apresentam como espaços de participação social onde ocorre articulação entre Estado e sociedade para analisar a conjuntura da área cultural e propor diretrizes para a formulação de políticas públicas de cultura. c) Planos de Cultura - (policy outcome) elaborados pelos conselhos de política cultural, a partir de diretrizes definidas nas conferências de cultura, tem por finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas a longo prazo. d) Sistema de financiamento à Cultura - com foco na responsabilidade e transparência orçamentária (accountabillity) nas políticas públicas (public policies) que proporciona recursos orçamentários e meios para financiar a execução de programas, projetos ou ações culturais. Seu papel como principal instância de financiamento da política pública nas três esferas de governo deve ser reforçado.

Este último ponto de financiamento com existência obrigatória do Fundo de Cultura que estabelece o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (FICART), ambos com o objetivo de captar e destinar recursos para projetos culturais compatíveis com a finalidade do Programa Nacional da Cultura (PRONAC) e criados na Lei nº 8.313/91 e onde estão sendo estruturados, dentro Programa Nacional de Incentivo à Cultura - PROFIC.

No sistema de accountabillity do financiamento público, de forma geral, os fundos são oriundos e previstos no planejamento orçamentário, primeiramente por meio do Plano Plurianual (PPA) que projeta as receitas e autoriza os limites de gastos nos projetos e nas atividades propostas pelo órgão gestor e aprovados pelos conselhos, com base na legislação nos princípios orçamentários e na instituição de fundos de cultura. A partir deste primeiro processo, os instrumentos de planejamento orçamentário, na administração pública, se desdobram na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA). Em suma, para configuração de um sistema de cultura em âmbito estadual e municipal é necessária a existência de Conselho, Plano e Fundo, o chamado CPF da cultura ou instrumentos de políticas públicas (policy instruments).

O que se pretende com a criação do Sistema Nacional de Cultura é a transferência de recursos orçamentários mínimos de investimento da União para Estados e Municípios que se enquadrem com a política cultural proposta pelo SNC. A aprovação da PEC 150/2003 precisa ser aprovada para entrar em vigor o sistema de financiamento público com repasses “fundo a fundo”4.

A importância da institucionalização dos fundos é imprescindível enquanto efetivação de uma política cultural para a viabilização de repasses e recebimento de recursos orçamentários para o financiamento da política pública, destinados aos programas, aos projetos e às ações culturais a serem implementados, descentralizado e em formas de colaboração entre os entes federados.

Conforme o próprio MinC que entende essa ação como uma política de Estado de cultura, o município de Jaguarão implementou através da Lei nº 6.102/2015 o Sistema Municipal de Cultura - SMC que tem como finalidade promover o desenvolvimento humano, social e econômico, com pleno exercício dos direitos ao fazer o recorte da dimensão econômica que tange esse setor, aplicando-se a norma que determina como devem ser elaborados os Planos Municipais de Cultura e que tem como uma de suas bases de sustentação dessa ferramenta de gestão, constituídos pelo conjunto de mecanismos de financiamento público da cultura que devem ser diversificados e articulados de forma que o orçamento deve ser detalhado no processo de projeção de receitas e autoriza os limites gastos com os Fundos de Cultura.

Pensando nessa sistemática, há de se elucubrar e relacionar uma lacuna existente e importante entre cultura e desenvolvimento como sustentação através de recursos públicos; isto é a questão da garantia de recursos mínimos para a sua existência futuramente como tal. Nesse sentido, no Brasil, é extremamente necessário a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 150/2003, que propõe a destinação de 2% de arrecadação da União, 1,5% de arrecadação dos estados e 1% da arrecadação dos municípios para a área da cultura. Cabe ressaltar que a PEC 150/203 prevê a tanto a transferência como a arrecadação dos entes federados.

Segundo o MinC, em 2011, ainda sobre a implementação do SNC, afirma que a esfera municipal é a que mais investe na cultura, diferentemente do orçamento da cultura federal, que mostra o inverso. Mesmo se tratando de uma proposição legislativa, se faz necessário uma análise comparada dos gastos locais em cultura e seu investimento na pasta administrativa do sistema orçamentário brasileiro de “função” cultura e compará-los com o proposto pela PEC nº150/2003. Ao destacar e entender o financiamento público em cultura como umas das diretrizes norteadores como construção da política pública de cultura, a partir da criação do SNC, cabe ao Estado brasileiro assumir suas responsabilidades em todas suas esferas, e através de acordos institucionais que vincula a receita orçamentária da União, estados e municípios ao desenvolvimento cultural a partir da PEC nº150/2003 pensando nesse sistema como forma de desenvolver a economia da cultura.

A finalidade deste estudo é a de discutir a importância e a necessidade da produção de informações que subsidiem os trabalhos de gestão pública municipal no campo da cultura com o intuito de pesquisar, analisar e sistematizar em um período de dez anos, iniciado em 2004 e findado em 2013, os gastos através do financiamento público para a cultura na cidade de Jaguarão, município fronteiriço com o Uruguai, situado ao extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, que possui 27 mil habitantes geograficamente pertencente ao bioma Pampa.

Panorama atual do financiamento público

Entender a cultura na contemporaneidade como um viés econômico (PCDB, 2006) é extremamente importante para difundir as manifestações culturais em sua totalidade plena, plural e diversificada, sempre respeitando para interagir com essas relações sociais em sua plenitude.

Pensar no Estado como meio principal de subsidiar e dar condições sociais, culturais, educacionais e de saúde para o desenvolvimento das pessoas, através de recursos públicos, é essencial para dar continuidade a trabalhos e ações já executados. Nesse sentindo, apresentaremos uma particularidade nova que, através de novas estruturas sociais, se configura a cultura no viés econômico do financiamento público em cultura em âmbito nacional, ao mostrar sua trajetória percorrida até o momento e, em seguida, partiremos para um cenário local, no município de Jaguarão, que é o objeto de estudo principal da pesquisa.

De forma que, analisaremos um recorte específico do tipo de financiamento público no Brasil, a partir da década de 905, onde se reconfigura um novo modelo econômico de financiamento público de conformação de uma nova política, bem digamos, voltado para as leis de mercado na qual o Ministério da Cultura tinha cada vez menos poder de interferência.

Muito por conta do tipo de política de financiamento público, e com a entrada da Lei Rouanet6, tornando-se um mecanismo específico para a introdução do investimento privado e de alto alcance e procura para abatimento de impostos, sem falar no retorno mercadológico e publicitário do investimento privado em projetos culturais, com o dinheiro público. Entende-se assim que houve uma grande concentração de recursos públicos investidos em ações privadas e concentradas na região do Sudeste.

Na década de 1990, segundo Calabre (2007) novas questões são apresentadas no campo da produção cultural. Tornam-se mais comuns os estudos e as discussões sobre as relações entre economia e cultura. Ainda que até hoje, o campo da economia é visto com uma enorme desconfiança por diversos setores.

Nesse sentindo, Botelho (2001) atesta que a produção cultural brasileira deve sua atividade basicamente às leis de incentivo fiscal federal, estaduais e municipais. Com isso, Botelho complementa que:

Quanto aos problemas mencionados, estes são provocados por um equívoco de base: hoje, o financiamento a projetos assumiu o primeiro plano do debate, empanando a discussão sobre as políticas culturais. Render-se a isso significa aceitar uma inversão no mínimo empobrecedora: o financiamento da cultura não pode ser analisado independentemente das políticas culturais. São elas que devem determinar as formas mais adequadas para serem atingidos os objetivos almejados, ou seja, o financiamento é determinado pela política e não o contrário (Botelho, 2001, p. 12).

Problematizar os aspectos econômicos referentes ao setor cultural, encontra-se em processo de consolidação enquanto um mecanismo que tente sustentar o financiamento público em cultura na perspectiva de criar parâmetros mínimos para o investimento em cultura. Pensado no âmbito público, este trabalho tentará expor a necessidade orçamentária do financiamento público para a sustentabilidade e indicadores econômicos, sociais, políticos para a construção, elaboração e a formulação de políticas culturais na esfera pública.

Financiamento público na perspectiva das políticas culturais

Propor um modelo democrático, assim possamos dizer, que de condições de acesso ao financiamento público no campo da cultura e de suas políticas culturais, prevalece primeiramente em reorganizar as estruturas públicas e suas administrações públicas governamentais ao criar novos formatos de acesso ao recurso público no âmbito da política pública como aponta Botelho:

Como toda política pública, as políticas culturais também necessitam prever, em seu planejamento, as suas fontes e mecanismos de financiamento. No entanto, é a clareza quanto às prioridades e às metas a serem alcançadas em curto, médio e longo prazos que possibilitará a escolha de estratégias diversificadas e adequadas para o financiamento das atividades artísticas e culturais (Botelho, 2001, p. 12).

Para pensar o financiamento como recurso fundamental das políticas culturais, o Estado deve assumir o papel de redefinir e configurar novos processos de diálogo em torno dessa construção e entender o sentido da cultura no viés econômico enquanto desenvolvimento. Porém, para a formulação e execução de uma política cultural de fato democrática e abrangente, são necessários vários recursos para se alcançar os objetivos. Recursos estes, que podem ser humanos, legais, materiais e financeiros, conforme indica Rubim (2007). Nesta interação e diálogo com Rubim (2007), Freire (2012) aponta para uma perspectiva de desconhecimento na condução do financiamento público:

No aspecto do financiamento, a histórica classificação da cultura como assessória em relação a outras áreas de atuação do Estado, como saúde, segurança e economia, por exemplo, coloca o investimento financeiro em cultura, ou a sua falta, como uma questão essencial para sua compreensão (Freire, 2012, p. 50).

Ao direcionar a presente análise para a perspectiva do financiamento contemporâneo na dimensão pública em relação à cultura, ainda procurando aportes teóricos que identifiquem a gestão de políticas culturais no tema do financiamento público, Freire (2012, p. 53) cita que é indispensável pensar na atuação de uma instituição ou indivíduo que promova o financiamento.

Assim, traçamos primeiramente a noção que uma política cultural deve ser enquanto um mecanismo de produção-artístico cultural que coloca em contato a figura do criador, expressa por diversos meios e linguagens e o agente do financiamento, que propicia a chegada do produto cultural ao mercado dos bens simbólicos. Vale destacar ainda que:

Desta forma, o campo cultural é financiado por várias fontes, que podem ser públicas, das diversas esferas, e também pela iniciativa privada, caracterizada por empresas, fundações e outros segmentos da sociedade civil. As formas como entes públicos e privados se relacionam são fatores fundamentais para a caracterização dos mecanismos de financiamento da cultura e o entendimento do lugar que esse financiamento ocupa em uma determinada realidade social (Freire, 2012, p. 53).

A partir disso, vemos um entrelace entre os processos organizacionais das instituições políticas-administrativas e as suas relações sociais da qual Barbalho (2005) também dedica conceituar a política cultural de forma à:

Relacionar-se à “organização das estruturas culturais”. Ao falar em “organização”, esta proposição parece identificar política com gestão cultural, quando, na realidade, a primeira trata (ou deveria tratar) dos princípios, dos meios e dos fins norteadores da ação e a segunda de organizar e gerir os meios disponíveis para execução destes princípios e fins. A gestão, portanto, está inserida na política cultural, faz parte de seu processo (Barbalho, 2005, p. 4).

Em outros termos ainda, podemos dizer que a política cultural que é o pensamento da estratégia e a gestão é quem cuida de sua execução, apesar desta gestão também ser pensada pela política. Ao analisar o pensamento de Michel de Certeau (1995, p. 193), a política cultural lida com o “campo de possibilidades estratégicas”; ela especifica objetivos “mediante a análise das situações” e insere “alguns lugares cujos critérios sejam definíveis, onde intervenções possam efetivamente corrigir ou modificar o processo em curso”.

Portanto, a partir de um conceito de política cultural que trate a gestão cultural inserida em seu curso e a operacionalização das ações, se faz necessário para uma primeira análise como questionamento principal, além de indicadores quantitativos (que se auto justificam no campo das ações de um política pública enquanto financiamento público), é preciso verificar a relação entre os tipos de manifestações socioculturais e a produção da interação dos indivíduos (cultura) como ponto chave do desenvolvimento humano aplicado a uma ação norteadora, por meio da política (policy),7 e que envolvam diretrizes a serem elaboradas em suas múltiplas dimensões para enfrentar um problema público, a política pública (public policy), de forma a pensar em soluções para este problema. Definimos aqui, enquanto um norteador para este problema público, que uma política pública descentralizadora possível só acontecerá se houver um diagnóstico que identifique parâmetros mínimos para aplicação das políticas culturais através do financiamento público.

Porém, identificar mecanismos que facilitem o acesso a esses recursos, ainda se encontram em processamento, visto que econômico-politicamente em esfera global, o financiamento público ainda se encontra em determinantes processos típicos do pensamento neoliberal, da mínima intervenção estatal nas políticas públicas, onde o financiamento da cultura passa a ser entendida no âmbito empresarial e mercadológico de um sistema dominantemente capitalista.

Nesse sentido, não posso deixar de mencionar, já se efetivando como um sistema privado da cultura, o maior financiador “público” de cultura do País, a Lei de incentivo fiscal nº 8.313/1991, a chamada Lei Rouanet, já institucionalizada como um grande propulsor da entrada da iniciativa privada ao setor cultural. Por meio desta lei, o produtor apresenta uma proposta cultural ao MinC e, caso seja aprovada, é autorizado a captar recursos para o financiamento junto a pessoas físicas ou empresas que contribuam por meio do imposto de renda.

No caso, o mecanismo que prevalece é a isenção de incentivo fiscal por meio do governo federal, sem que acha mínima regulamentação dos recursos privados, de maneira que os projetos culturais acabam ficando a cabo do interesse das empresas privadas8, que mantém uma relação marketing de retorno social do projeto cultural/empresa. Não é à toa que historicamente os maiores investidores do mecenato são os bancos privados, as empresas de telecomunicação e as multinacionais. Os incentivadores que apoiarem o projeto poderão ter total ou parte do valor investido deduzido do imposto a pagar Brasil (2011).

Nesta modalidade de financiamento as trocas são mais explícitas, numa clara relação de mercado, onde se investe com a perspectiva de obtenção de retorno de natureza diversa, seja através do aumento de prestígio e reconhecimento que se enquadra no campo do simbólico ou mesmo com o aumento no faturamento e nos lucros, pertencente ao campo material e tangível. Na comparação entre financiamento do Estado e do mercado para a cultura, uma diferença visível se constata na mensuração dos resultados. Na atuação do Estado os ganhos são para a coletividade, considerando-se relevantes a produção, o acesso e o consumo cultural como fatores determinantes para a dinâmica da transformação de uma sociedade.

Evidencia-se também, diferentes níveis de investimento em cultura entre Estado e mercado e, portanto cria uma certa inquietação nas práticas de financiamento público em cultura. Para ilustrar a análise, Ana Carla Reis comenta que esse entendimento em verificar as motivações em investir em cultura entre essas duas esferas de análise momentaneamente nesse primeiro grau comparativo, pode ser definido através do quadro comparativo à medida que sintetiza as diferenças fundamentais expostas pela autora. O quadro a seguir expõe da seguinte forma as classificações: Motivação, Público-alvo, Objetivo e Forma de mensuração.

Quadro 1 Setor público e privado no financiamento da cultura.
Setor Público Setor privado
Motivação Social Social ou pessoal (mecenato) comercial (patrocínio)
Público-Alvo População em geral Consumidores/clientes atuais, ou potenciais, fornecedores, funcionários, governo, formadores de opinião, jornalistas, comunidades, etc.
Objetivo Os estabelecidos na política cultural: democratização, diversidade, promoção da identidade nacional, etc. Pessoais ou sociais (mecenato) ou estabelecidos na estratégia de comunicação: divulgação da marca, aprimoramento da imagem, endomarketing, promoção junto a segmentos, etc. (patrocínio)
Forma de mensuração dos resultados esperados Eliminação das desigualdades de acesso à cultura, distribuição descentralizada dos projetos e instituições culturais, estudo de imagem do país, aquecimento da economia local, etc. Cobertura de mídia, levantamentos de conhecimento da marca, estudos de imagem, predisposição à compra, aprovação de projetos, etc.
Articulação Setores econômico, social, educacional, tecnológico, de relações exteriores, etc. Com a comunidade (mecenato) ou com a estratégia de comunicação da empresa (patrocínio)

Apresentamos para a discussão a partir do quadro exposto acima, as duas visões de atuação no setor cultural, tanto do setor público quanto do privado que permeiam o financiamento na gestão das políticas culturais introduzida muitas vezes com a presença do setor privado enquanto efetivação de uma política pública de cultura, a partir do financiamento público. Evidenciaremos principalmente o contexto local da pesquisa com práticas políticas por grupos de interesse, o chamado clientelismo (lobby).

Institucionalização e o papel da cultura nas políticas públicas no desenvolvimento local

A partir de 2003 com a nova concepção de entendimento da cultura, o MinC tem promovido debates com o intuito de buscar norteadores para o financiamento público a partir das discussões presentes nas Conferências Nacionais de Cultura. Através do esforço institucional para a realização de uma política cultural, consequentemente no ano de 2012, através da Emenda Constitucional nº 71/2012, foi aprovado o Sistema Nacional de Cultura que tem como um de seus objetivos a adesão dos municípios ao Sistema Nacional de Cultura em todo território nacional.

Para tanto, na inclusão e complementação desse Sistema, acrescentou-se o artigo 216-A à Constituição da República, que define como integrante da sua estrutura básica, entre outras instâncias, os sistemas de financiamento à cultura (§ 2º, VI). Esse marco para a institucionalização da gestão cultural em âmbito nacional, somado à lei nº 12.343/2010 que instituiu o Plano Nacional de Cultura (PNC), apontam para a necessidade de previsão de recursos nos orçamentos públicos para sua efetiva implementação. O Capítulo III do PNC, com o tema Financiamento, estabelece em seus artigos 4º e 5º que:

Os planos plurianuais, as leis de diretrizes orçamentárias e as leis orçamentárias da União e dos entes federados que aderirem às diretrizes e metas do Plano Nacional de Cultura disporão sobre os recursos a serem destinados à execução das ações constantes do Anexo (metas) desta Lei. O Fundo Nacional de Cultura, por meio de seus fundos setoriais, será o principal mecanismo de fomento às políticas culturais (PNC, 2010, p. 5).

Conforme o próprio MinC que entende essa ação como uma política de Estado de cultura, o município de Jaguarão implementou através da Lei nº 6.102/2015 o Sistema Municipal de Cultura - SMC que tem como finalidade promover o desenvolvimento humano, social e econômico, com pleno exercício dos direitos. Fazendo o recorte da dimensão econômica que tange esse setor, aplicando-se a norma como devem ser elaborados os Planos Municipais de Cultura, tendo como uma de suas bases de sustentação dessa ferramenta de gestão, constituídos pelo conjunto de mecanismos de financiamento público da cultura que devem ser diversificados e articulados de forma que o orçamento deve ser detalhado no processo de projeção de receitas e autoriza os limites gastos com os Fundos de Cultura. Nesse sentido, no Brasil, é extremamente necessário a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 150/2003, que propõe a destinação de 2% de arrecadação da União, 1,5% de arrecadação dos estados e 1% da arrecadação dos municípios para a área da cultura. Essa porcentagem pode ser verificada no gráfico abaixo, a partir da evolução dos orçamentos públicos de cultura9 segundo a análise de Álvaro Santi:10

Gráfico 1 Evolução do percentual dos orçamentos aplicados na função Cultura, 2000-2013. Fonte: MinFaz/STN. Consolidação das Contas Públicas.
 Fonte: Álvaro Santi, 2015, p. 90.

Neste gráfico fica claro que tanto a União como os estados investiram pouco ou quase nada, em percentagem, na margem de 2% e 1,5% respectivamente. A União investiu até o ano de 2013, 0,12%, e os estados investiram 0,47%. Já os municípios seguiram a recomendação da PEC e investiram 1,04% de suas despesas orçamentárias para a função Cultura. Isso representa que a União, seguido dos estados, ainda investem pouco ou quase nada em valores reais respectivos aos seus orçamentos no financiamento à cultura. Ao destacar o financiamento público em cultura como umas das diretrizes norteadoras como construção da política pública de cultura, a fim de compreender a dinâmica e o funcionamento da administração pública no desenvolvimento da cultura na esfera orçamentária, apresenta-se um estudo de caso em âmbito municipal referente à discussão sobre a importância e a necessidade da produção de informações que subsidiem os trabalhos da gestão pública municipal no campo da cultura, com o intuito de pesquisar, analisar e sistematizar os gastos através do financiamento público na cidade de Jaguarão.

Até o momento, verificou-se a quantia orçamentária que foi destinada para a função Cultura do munícipio de Jaguarão no período de 2004 a 2013 a partir do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS).

Gráfico 2 Comparação entre a despesa orçamentária e despesa orçamentária para a função Cultura de 2004 a 2013 no município de Jaguarão/RS, em relação à PEC nª 150.
 Fonte: Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS). Ano da Pesquisa: 2015/2016 (Elaborado pelo autor).

Ao analisar o gráfico acima e à medida que utilizamos esta análise no âmbito do município de Jaguarão, comprova-se efetivamente maior despesa orçamentária na esfera municipal. A despesa orçamentária na função Cultura no município de Jaguarão teve uma média geral no período de análise de 2004 a 2013, de 1,7% acima do previsto 1% dos recursos orçamentários na função Cultura como prevê a PEC nº 150. Outro fator a ser analisado em segundo plano é a constante despesa na função Cultura acima de 1% a partir de 2009, mesmo com retrações orçamentárias na função Cultura de 2009 a 2011, em relação ao período anterior decorrido onde há variações abaixo da perspectiva de despesa prevista pela PEC 150.

Um importante fenômeno a ser compreendido neste período que complementa a análise, é o salto econômico da União a partir de 2009 que proporcionou uma alavanca em investimentos públicos em todo o Brasil, assim também na área da cultura e na esfera federal, estadual e municipal. A partir da análise do contexto local, na cidade de Jaguarão, observa-se que pelo fato de ter o conjunto histórico e paisagístico tombado11 em 2011 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), grande parte de investimentos teve início a partir de 2009 e fortaleceu-se enquanto política cultural efetiva de preservação do patrimônio cultural. No que tange ao financiamento público, o mesmo teve início a partir da transferência de repasses do governo federal para o município.

Dentre as ações executadas, coordenadas entre o Ministério do Planejamento e o Ministério da Cultura, pode-se notar a criação do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC Cidades Históricas12 1 e 2 (ainda em andamento) que promovem a gestão do patrimônio cultural em 44 cidades, presentes em 20 estados do Brasil, com o objetivo de prever a recuperação, restauro e qualificação de seus conjuntos e monumentos. Com isso, a cidade de Jaguarão entrou no rol dos investimentos contemplados pelo MinC/Iphan. Nesse sentido, Jaguarão foi a cidade do estado do Rio Grande do Sul que mais obteve recursos destinados à gestão do patrimônio histórico nacional, com 11 ações13 que somam o valor total de R$ 40 milhões14 de reais e aumentam significativamente o orçamento municipal no período. Isso será evidenciado enquanto ação da gestão municipal no quadro abaixo.

No entanto, verificou-se também a perspectiva municipal da análise das Leis de Diretrizes Orçamentárias, onde são estipuladas as metas e os recursos orçamentários previstos para serem distribuídos no ano determinado e comprova-se as aplicações orçamentárias no período de análise com concentração de recursos em determinados setores que sofrem influência das práticas de clientelismo por instituições e grupos com bastante influência na cidade ou que no momento, conseguem dispor de mobilização técnica e profissional por meio de pessoas ou grupos que concentram uma certa experiência na área cultural, mas somente através do mérito. Como recurso financiado na esfera pública diretamente na função Cultura, temos as seguintes ações propostas financiadas no período de análise:

Quadro 2 Ações propostas a partir da Lei de Diretrizes Orçamentárias na função Cultura, por ano e órgão gestor.
Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO
Ano Ação Órgão Gestor (Sub-função) Função
2004 Patrimônio histórico, artístico e arqueológico Secretária de Indústria, Comércio e Turismo Cultura
2005 Patrimônio, histórico artístico e arqueológico, valorização da cultura gaúcha, Semana de Jaguarão, Carnaval e Natal Luz, Ass. Artesão de Jaguarão, Festival de Música Nativista, Motofest, Pórtico para os turistas, urbanização rua Uruguai Secretária de Indústria, Comércio e Turismo - Casa de Cultura Cultura
2006 Manter em funcionamento as dependências do Mercado Público, reforma e manutenção do prédio da Casa de Cultura, promoção de Fóruns de Turismo, confecção de material para a divulgação do município, vias públicas, Festival Nativista, Motofest, Natal Luz, Carnaval, Manutenção do Teatro Esperança Secretária de Indústria, Comércio e Turismo - Casa de Cultura Cultura
2007 Aquisição de material, manutenção do mercado público, reativação do artesanato local, manutenção da Casa de Cultura, promoção de Fóruns de Turismo, urbanização, Festival Nativista Secretária de Indústria, Comércio e Turismo - Casa de Cultura Cultura
2008 Aquisição de material, promoção do turismo, Motofest, Garota Verão, Semana do Turismo, Aniversário de Jaguarão, Natal Luz, Carnaval, atividades do calendário de eventos manutenção do Teatro Esperança Secretária de Industria, Comércio e Turismo - Casa de Cultura Cultura
2009 Desenvolvimento no turismo, manutenção do mercado público, restauro Casa de Cultura, valorização do patrimônio histórico cultural, eventos artísticos-culturais, manutenção da banda e coral municipal, promoção cultura nos bairros, implantação de pontos de cultura, realização da Feira do Livro do Mercosul, Natal Luz, Carnaval, Semana da consciência Negra, convênio com CTG’s e Piquetes Tradicionalistas Secretária de Cultura e Turismo Cultura
2010 Informações inexistentes - -
2011 Descentralização da cultura, valorização do patrimônio histórico cultural, eventos artísticos-culturais, desenvolvimento do turismo, apoio administrativo ao desenvolvimento cultural e econômico e sustentável Secretária de Cultura e Turismo Cultura
2012 Desenvolvimento econômico e sustentável Secretária de Cultura e Turismo Cultura
2013 Desenvolvimento cultural e econômico sustentável: descentralização da cultura, Casa de Cultura, revitalização do patrimônio histórico cultural e arquitetônico Eventos artísticos culturais, desenvolvimento do turismo, apoio administrativo Secretária de Cultura e Turismo Cultura
  • Fonte: Anexos das Leis de Diretrizes Orçamentários - Prefeitura Municipal de Jaguarão - PMJ - Período: 2004-2013 (Elaborado pelo autor).

Como observado no quadro acima, notamos uma grande concentração e preocupação desde as atuações das primeiras gestões de 2004-2008 com a preservação do patrimônio histórico e a manutenção dos equipamentos culturais, incluindo o Teatro Esperança como também, com o aprimoramento de recursos evidenciados pela execução de eventos artísticos-culturais legislados no calendário de eventos da cidade (que são obrigatórios para sua realização) como a Motofest, Carnaval, Natal Luz, Festival de Música Nativista e demais eventos. Todos os eventos relacionados têm como principal executor a Casa de Cultura, que assume o papel de um braço na execução das atividades culturais do órgão gestor da Secretária Municipal de Indústria, Comércio e Turismo,15 através de oficinas de pintura, artesanatos, mostras artísticas entre outras ações.

Somente em 2009-2013, se efetiva a criação da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo,16 que entende a cultura e o turismo e sua relação com o desenvolvimento, em certo grau, à medida que compactua com alguns pontos do SNC, pensa na implementação de pontos de cultura17 e também preserva os principais eventos, artísticos-culturais compactuados como a gestão anterior. Ao adentrar na especificidade da gestão 2009, também se verificou o entendimento da cultura relacionada aos programas de governo em âmbito local denominada Descentralização da Cultura, onde sustenta uma possível (re) dimensão dos recursos orçamentários na função Cultura, mas sem a institucionalização que legitime esses processos democráticos no âmbito da cultura nesse período. Observou-se também que sempre opera na lógica da distribuição dos recursos a partir das LDOs onde estão os eventos locais consolidados, conforme o calendário de eventos.

Essas práticas atuais, de certa forma, consolidadas por causa da execução do calendário de eventos onde, a partir disso, é disponibilizado ou está previsto o repasse de recursos orçamentários para a função cultura, onde são aplicadas (algumas) determinadas manifestações culturais que operam sobre forte influência das práticas interpessoais (via grupos, coletivos mais articulados politicamente) e agem de forma dominante sobre a transversalidade da cultura no sentido plural, como é reverberado a cultura no sentido antropológico a partir de 2003, em âmbito nacional e do novo entendimento de gestão compartilhada pelo Ministério da Cultura.

Portanto, pensar, delimitar e definir parâmetros para a aplicação de políticas públicas na cultura só pode ser concebido a partir de informações e indicadores que transmitam essas diferenças para que as políticas públicas sejam, se necessário, reconfiguradas na realidade local.

Considerações finais

Procurou-se evidenciar em um recorte sobre os gastos em cultura de uma década através do financiamento público local. Em suma, os dados reunidos demonstram uma posição significativa de aumento em recursos destinados à cultura, principalmente na esfera municipal da cidade Jaguarão, a partir articulação do Ministério da Cultura, através do Sistema Nacional de Cultura.

Demonstrou-se também a importância de mensurar, avaliar e buscar aperfeiçoamento da gestão das políticas públicas de cultura e a existência de condições orçamentárias mínimas. Buscou-se uma reflexão de como essas políticas podem ser elaboradas, desenvolvidas e executadas, e como contribuem para o manejo de gestores públicos, com a participação da sociedade civil no gerenciamento de novos sistemas e indicadores culturais que apontem as presentes realidades.

De fato, ao analisar os dados contábeis e sua relação orçamentária, a partir de sua prática e ao relacioná-los com o discurso dos gestores, entende-se que há vontade, porém há insegurança ou algum tipo de bloqueio e articulação política para que se introduza essa realidade na dimensão econômica da cultura com o fim de descentralizar e acabar com as práticas de gabinetes já existentes. Essa nova concepção que visa democratizar o acesso, também encontra resistência dos próprios agentes culturais como possíveis perdas de privilégios e de dominância do espaço público que são desmobilizadas, no sentido de se desfazer das relações pessoais na administração pública e no caso da cultura, o que não é diferente.

Portanto, entender a virada desse processo institucional através de meios policy instruments é reverberar a descontinuação dessa ação e passar a compreender um outro pensamento possível e ainda recorrentes do sistema público político e pensar nessa modificação de forma institucional para prever recursos específicos para área, definidos em lei que proporcione esta movimentação através do Fundo Municipal de Cultura, que produz entre Conselho de Política Cultural e Secretária Municipal de Cultura, uma articulação com vistas a definir parâmetros mínimos e indicadores econômicos para a distribuição e acesso dos recursos públicos de forma democrática.

Atualmente, pode-se constatar que as políticas públicas locais ainda operam, de certa forma, extrativistas, mas com indícios mínimos de modificação perenes às condições propostas em âmbito nacional, principalmente por terem encontrado meios disponíveis para transformar as intenções em ações políticas (policy window) que começam a definir e a tomar um rumo para se tornarem políticas públicas inclusivas e redistributivas, com novas tomadas de decisões e a inclusão de novos atores sociais.

Cabe trazer à luz desta pesquisa, que o aprimoramento de maior responsabilidade orçamentária (accountability) de uma política cultural deve ser embebecida por uma ampliação de reforma da gestão pública local, tanto do formato aplicado pelo financiamento (orçarmentário) como pela estrutura técnica-política e administrativa para um modelo gerencial (new public management) e deve ter como princípio, a eficácia, a liberdade de decisão do gestor, a orientação aos resultados, a orientação às necessidades dos usuários, dos serviços públicos e a competição intra e interorganizacional (Secchi, 2015, p. 4).

Por fim, é preciso compreender que o financiamento público é imprescindível na gestão e no desenvolvimento de políticas culturais e que deve ter a finalidade da difusão e da produção cultural local como desenvolvimento das dimensões simbólicas enquanto identidades, manifestações artísticas e expressões culturais, econômicas através da geração de emprego e renda, e cidadã, no exercício do direito e da liberdade enquanto indivíduo e coletivo nas sociedades contemporâneas.