Introdução

O projeto Cartografia da Cultura Fronteiriça foi executado entre os anos de 2014 e 2015 e seu principal produto foi um etnomapeamento das entidades e das organizações socioculturais presentes na região da fronteira sul do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil e tem como base os municípios de Arroio Grande e Jaguarão.

O etnomapeamento consistiu no registro das dinâmicas socioculturais da região e foi compartilhado através da publicação de uma cartilha em formato de e-book, como também na inserção das informações no sistema de informações e nos indicadores culturais do Estado do Rio Grande do Sul - o "Mapa Digital da Cultura RS". A pesquisa demonstrou informações diversas sobre grupos e entidades culturais das cidades mapeadas como grupos artísticos em seus diferentes segmentos (escolas de samba, escolas de dança e outros) proporcionando, desta maneira, um diagnóstico parcial da cultura local.

Desta forma, o objetivo deste artigo é revelar a relação entre os resultados da pesquisa e os conceitos de políticas culturais, de fronteiras e da integração cultural e também discutir a participação dessas organizações no processo de multiculturalização e bem estar social em contraponto com o praticado sob o viés do Estado Nacional e por último, explanar sobre o papel das organizações da sociedade civil na gestão cultural não estatal, ao considerá-las como protagonistas e principal ferramenta nestes processos.

Questões Conceituais: Políticas Culturais

Com o fim de oferecer uma maior contribuição para a análise dos resultados obtidos na pesquisa de campo, foi necessário definir alguns conceitos tratados no projeto, como: Políticas Culturais, Fronteira e Integração Cultural.

Considerando que o principal assunto debatido neste artigo trata-se de políticas públicas na área da cultura, cabe definir o que entenderemos como política cultural. García Canclini (2005) aborda as políticas culturais como intervenções realizadas pelo Estado, pelas instituições civis e pelos grupos comunitários organizados com o intuito de promover o desenvolvimento simbólico, ao satisfazer as necessidades culturais da população e ao promover a sua transformação social.

García Canclini (2005) também ressalta que as políticas culturais não devem ser implementadas somente de forma local ou regional, mas devem garantir o intercâmbio e a globalização dos fluxos, levando-se em conta o caráter transnacional dos processos simbólicos e dos materiais da atualidade, em um tempo onde as indústrias culturais atravessam fronteiras, agrupando-nos e conectando-nos de forma globalizada. O mesmo autor considera as entidades civis como ferramentas essenciais para a promoção das políticas culturais que atuam conjuntamente com o Estado e com os grupos organizados, sendo esses últimos os responsáveis pela expansão simbólica, social e cultural da população.

Nesse sentido, Coelho Neto (1997, p. 293), no Dicionário Crítico de Política Cultural, conceitua políticas culturais baseando-se na mesma linha de pensamento de García Canclini (2005):

Constituindo (...) uma ciência da organização das estruturas culturais, a política cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes, visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável (García Canclini, 2005, p. 293).

Dessa forma, Coelho Neto (1997), assim como García Canclini (2005), traz uma visão ampla sobre o que são e quem promovem essas políticas e que as políticas culturais são essenciais para a subsistência dos grupos sociais. Além de promover o novo, as políticas públicas são responsáveis por preservar o que já está implementado e/ou estabelecido. Nesse sentido, a participação das entidades privadas e dos grupos sociais organizados nesse aspecto se torna essencial e indispensável, à medida que assumem um papel prioritário.

Baseado na mesma ideia, Barbalho (2005) defende que as instituições não-estatais e empresas privadas também podem ser promotoras de políticas culturais. O autor considera que a dimensão pública se encontra intrinsecamente na cultura e na política e pode também se manifestar de forma específica como resultado da personalidade jurídica assumida pelas instituições responsáveis pela implementação destas políticas como nas organizações não-estatais, que têm uma forte presença na sociedade civil. Estas organizações são basicamente formadas com o único intuito que é promover o bem-estar público dos seus associados e da região onde atuam.

Questões Conceituais: Fronteiras e a Integração Cultural

Como o objeto da pesquisa trata das organizações e dos grupos sediados em região de fronteira, faz-se necessário conceituar o que entendemos como fronteira como também integração cultural em regiões fronteiriças. Bento (2015, p.40) apresenta um conceito que trata a fronteira como "espaços físicos, geográficos, de distinção para a afirmação de identidades coletivas situadas nesses territórios específicos". Para ele, "fronteiras são invenções culturais, territoriais, de comunidades antigas com territórios e identidades culturais diferentes".

Ele também apresenta uma explanação sobre o fenômeno de integração cultural e social desenvolvido nessas regiões:

Os sujeitos coletivos protagonistas dos processos de construção das experiências de integração regional de Estados são sujeitos localizados no vértice institucional de poder dos Estados e na base popular constitutiva de tais Estados. Porém, enquanto as experiências de integração de vértice podem ser caracterizadas pela transitoriedade dos eventos institucionais, e pela assinatura de acordos para a realização de projetos nem sempre executados, a integração de base é um dado permanente, fático, real, entre as populações das cidades integradas de fronteira (Bento, 2015, p. 46).

Por meio destes conceitos pretendeu-se analisar a atuação das organizações e dos grupos culturais pesquisados como agentes fomentadores da integração cultural e social nas fronteiras onde estão localizadas, considerando-os como organizações e grupos com atuação em projetos de interesse público e os cidadãos locais, como os protagonistas no desenvolvimento dos mesmos. Bento enfatiza em seus escritos que a integração de base, que é advinda dos intercâmbios naturais causados pelo trânsito de pessoas residentes em ambas as regiões, são as verdadeiras ações concretas de integração cultural e social e não somente as ações propostas pelos governos, que, na sua maioria, exclusivamente reafirmam o que já ocorre há anos e até décadas de forma natural.

Segundo Mazzei (2012), a fronteira uruguaia com o Brasil representa 6,8% do total da área de fronteira que o país possui com os restantes dos países sul-americanos e que abarca um total de 798.478 habitantes residentes nas áreas fronteiriças. Do lado uruguaio, o departamento de Cerro Largo é o segundo maior em nível populacional e representa 25,7% da população local. Para Mazzei (2012, p. 35):

Las ciudades fronterizas uruguayo-brasileñas pueden definirse como sociedades cuyos grupos sociales interactúan sostenidos por una convivencia que antepone a restricciones formales su libertad de circulación en la frontera. Serían escenarios en los cuales fluyen solidaridades, asistencias, lealtades, fraternidades, cooperaciones y negociaciones de todo tipo facilitadas por el respaldo directo o indirecto de la sociedad civil organizada a través de distintas representaciones en sus espacios públicos y privados (Mazzei, 2012, p. 35).

Podemos verificar por meio deste texto, que essa região onde se localizam os objetos do nosso estudo é uma localidade que vive um constante intercâmbio sociocultural e a sociedade civil é a principal responsável pela manutenção deste, independente das restrições ou das legislações impostas pelos governantes dos dois países. Este intercâmbio contínuo é o responsável pelo sentido da totalidade territorial desta fronteira, ao gerar a denominada integração fronteiriça de fato e não somente a integração fronteiriça de direito, idealizada pelos instrumentos jurídicos e que na prática, acaba torna-se inviável de ser efetivada.

O autor também menciona que essas sociedades têm em prática mais a "integração de fato" do que a "integração de direito" e têm como principal fator, o potencial de interação, o imediatismo e a facilidade de intercâmbios, diferentemente do ocorrido com as legislações e os acordos legais, "cuyas interacciones ante la inmediatez y facilidad de intercambios beneficiosos que garantizados por confianzas mutuas generalmente eluden y desafían la cargas de los controles legales", segundo Mazzei (2012, p. 36).

Segundo o autor, a relação das políticas públicas culturais aplicadas em âmbito local nos municípios fronteiriços de Jaguarão/RS e Rio Branco/Uruguai, se diferenciam em relação à importância social e política desempenhada no desenvolvimento de atividades culturais. O autor afirma que a gestão municipal brasileira se caracteriza por uma maior valorização política, de inclusão dos setores sociais e de fomento à mobilização cultural que constituem uma frente cultural ampla e consistente, diferentemente da envergadura em sentido diminuto das políticas culturais promovidas pelas administrações uruguaias.

Metodologia

Esta pesquisa teve caráter qualitativo. O público alvo da pesquisa foram alguns dos membros que compõem os grupos e as organizações identificados. Foram entrevistados no mínimo um membro da diretoria ou da gestão e um membro beneficiário das ações desenvolvidas pelos grupos e pelas entidades.

O trabalho foi dividido em três etapas: a primeira consistiu no levantamento e coleta de dados; a segunda etapa, na pesquisa de campo realizada através da visita aos grupos e às associações mapeados e a terceira e última etapa, consistiu no tratamento dos dados e das informações coletadas durante a pesquisa.

A primeira etapa tomou por base cadastros existentes nas prefeituras, Cadastro Estadual de Produtores Culturais da Secretaria de Estado da Cultura, do Ministério da Cultura entre outros, informações sobre a existência de grupos, pontos de cultura, associações e demais entidades que servissem de suporte para a construção de um banco de dados inicial.

Na segunda etapa, com base nas informações coletadas na primeira, realizamos pesquisa de campo, visitando os grupos e as associações culturais mapeadas. Utilizamos como método de estudo a aplicação de questionários para o corpo diretivo e para o público frequentador, que priorizava as seguintes informações para a direção das entidades e dos grupos: localização e situação da sede do grupo; principais atividades artísticas e educacionais do grupo; principais parceiros e no que consistem essas parcerias; formação de profissionais no setor cultural e a forma de financiamento e de subsistência dos grupos. Objetivou-se traçar um perfil de como eles se conectam com outros grupos, a existência de outras conexões dentro de suas comunidades, a estrutura que dispõem estes grupos e como financiam e desenvolvem suas atividades.

Para o público frequentador dos grupos utilizamos um questionário que priorizava as seguintes informações: idade e nível escolar; forma de deslocamento até o grupo ou à associação; inclusão digital através do uso do microcomputador e acesso à internet; importância das atividades dos grupos para a comunidade; frequência de uso de equipamentos culturais como teatros, cinemas, museus, biblioteca, centro de tradições gaúchas e eventos artísticos como shows e apresentações musicais. Outro objetivo foi observar o perfil da pessoa a quem este grupo atende, a importância das atividades dos grupos e a relação de acessibilidade tanto aos meios de comunicação quanto aos equipamentos culturais.

A terceira etapa consistiu no tratamento dos dados gerados através das informações coletadas pelos questionários e das vivências nos grupos, das entidades e das associações pesquisadas. O resultado foi disponibilizado através da inserção dos dados nos sistemas de informações e nos indicadores culturais existentes em âmbito estadual e resultou na construção de um livro em formato de e-book, que contém todas as informações adquiridas, como a quantidade de grupos culturais presentes na região, as atividades desenvolvidas por esses, o número de pessoas que trabalham nos grupos, as principais formas de divulgação adotadas pelos grupos, perfil das pessoas que frequentam os grupos, o custo que o grupo possui para executar suas atividades, a forma de captação dos recursos para execução das atividades e os bens culturais produzidos por eles.

Também durante a etapa três foram realizadas capacitações com os grupos pesquisados através de cursos presenciais (oficinas) e palestras, o que possibilitou maior conhecimento e aquisição de experiência entre os agentes culturais e o público frequentador dos grupos e das associações mapeados.

Resultados

Com este trabalho identificamos um total de dezessete grupos, entidades e/ou aparelhos culturais. Do total dos grupos pesquisados há uma predominância de escolas de samba, que correspondem a 35,29% das entidades pesquisadas. Notou-se que estes grupos se sustentam de forma bastante precária, visto que apresentaram necessidades específicas que não têm suporte na atual estrutura; em sua maioria não conseguem dar continuidade ao trabalho durante todo o ano em virtude de não terem subsídio para manter a instituição por um longo período.

Os mesmos grupos relataram que os projetos desenvolvidos pela maioria dos objetos identificados são realizados de forma a promover maior integração dos membros e que, em sua maioria, não são autossuficientes financeiramente, e dependem de doações e da ajuda de custo do poder público. Grande parte dos responsáveis ou dos dirigentes destes grupos tem capacitação jurídica e contábil insuficiente, além de pouca informação relacionada à gestão de organizações sociais como também sobre mecanismos de financiamento público por meio de leis de incentivo fiscal e editais.

As escolas de dança correspondem a 17,64% do total pesquisado. Estas entidades apresentam em sua maioria foco em atividades voltadas a uma época especial do ano, quando se preparam para eventos específicos dentro de um calendário pré-estabelecido. Percebeu-se que esta ocorrência se dá por conta de uma quase ausência de incentivos a estes grupos, que em sua maioria sobrevivem através de apoios do comércio local e/ou incentivos dos próprios participantes destas entidades.

Os demais grupos entrevistados totalizam 47,05% dos pesquisados e são clubes sociais, sociedades culturais, confrarias, institutos esportivos culturais, associações de artesanato e instituições de formação política. A maioria das dificuldades enfrentadas por estas instituições são relacionadas à falta de estrutura adequada, capacitação deficiente dos coordenadores e dirigentes, pouca informação a respeito de leis de incentivo que possam apoiar a instituição, e a falta ou pouco subsídio governamental e privado.

Cabe ressaltar que na unanimidade das respostas dos grupos e das organizações identificados é possível perceber que uma das maiores carências relatadas era a falta de profissionalização dos seus gestores, especificamente nas áreas de captação de recursos e na gestão dos atuais projetos desenvolvidos. Desta forma, como uma maneira de minimizar esta carência identificada, o grupo de pesquisadores ofertou duas oficinas com temáticas voltadas à área cultural, à economia criativa e à elaboração de projetos culturais afim de instruir minimamente os agentes culturais atuantes nos grupos e nas organizações dos locais onde a pesquisa foi executada.

Ao analisar as respostas dos frequentadores desses grupos e dessas organizações, pôde-se identificar que 90% das respostas apontou essas organizações como únicos locais de socialização e ferramentas culturais frequentados pelos objetos, 95% dos entrevistados não tinham jamais frequentado outro espaço cultural, como teatro ou cinema e as atrações culturais vivenciadas por esses eram proporcionadas pelas organizações mapeadas por meio de rodas de samba, festivais de dança, grupos de teatros amadores e as festividades carnavalescas, a principal atividade cultural. Cabe ressaltar que as escolas de samba em conjunto com as associações de artesanato, são majoritariamente as organizações que promovem durante o ano, cursos e oficinas para os seus frequentadores.

Discussão

Levamos em consideração que - apesar da frequente socialização, das grandes relações sociais e do intenso intercâmbio cultural presente nas regiões de fronteiras - estamos falando de uma região que sofre uma grande exclusão dos circuitos culturais, uma região que não tem por parte do Estado, políticas públicas voltadas às suas especificidades e que dialoguem com as recorrentes transformações e transmutações advindas dos seus atributos históricos, geográficos, econômicos, políticos e sociais. Pensamos, antes de tudo, que estudamos entidades e grupos sociais que muitas vezes ocupam o lugar do Estado na promoção de políticas culturais e sociais e principalmente, na disponibilização de espaços de socialização e de convivência para as comunidades assistidas por estes.

O que se torna evidente em nosso estudo é que, apesar de termos pesquisado diversos grupos sociais, observamos que os processos culturais aplicados por estes levam em conta, em sua grande maioria, as influências trazidas pelas variadas culturas presentes na região; percebeu-se a presença da cultura afro, da cultura indígena, da cultura europeia, da cultura gaúcha, que se apresentam de forma harmônica, traduzidas pelas produções culturais dos grupos.

Ao considerar as abordagens feitas por Semprini (1999) sobre multiculturalismo, com base nas observações de campo, pode-se dizer que levando em conta as características específicas da região, os grupos sociais ali presentes são espaços multiculturais, pois evidenciam as diferenças culturais e sociais dos seus atores, porém coexistem e defendem as suas especificidades, o que é de difícil alcance para o Estado; isto ocorre de maneira natural e em grande parte, pacífica no dia-a-dia das organizações da sociedade civil.

A pesquisa é demonstrada como uma ferramenta de apoio ao poder público para a análise da participação das organizações na promoção das políticas culturais, conforme a explanação de Bruno Marcelino (2015):

Compreendendo que a área cultural necessita de uma política pública eficaz e que atenda as especificidades desse campo, e entendendo também que antes de qualquer ação na área cultural se faz necessário um prévio panorama da situação das instituições, coletivos e espaços culturais, o mapeamento realizado pelo projeto Cartografia da Cultura Fronteiriça é uma importante ferramenta de subsídio para a atuação dos governos em suas três instâncias e da sociedade civil articulada. Fez se necessário conhecer os grupos, entidades, aparelhos e agentes culturais que atuam nas cenas locais dos municípios de Arroio Grande e Jaguarão, afim de integrar as informações destes espaços através de uma rede atualizada (Marcelino, 2015, p. 266).

O projeto em questão vem ao encontro das metas do Plano Nacional de Cultura e, em especial, do SNIIC - Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais que tem como objetivo permitir que os agentes culturais e a sociedade como um todo possam ter acesso às informações do segmento cultural em um único lugar e que permitam que o Brasil se equipare aos outros países da América Latina e do mundo que já possuem banco de dados culturais.

Marcelino (2016), ao analisar especificadamente a atuação do ponto de cultura Clube Social 24 de Agosto no município de Jaguarão esclarece que:

[...] o clube hoje tem uma efetiva participação na promoção das políticas culturais no município de Jaguarão, contando com o reconhecimento do poder público como uma organização parceira no desenvolvimento destas políticas, atuando de forma expressiva na construção de uma rede de ações socioculturais, por meio do desenvolvimento de projetos e atividades em conjunto com diversos grupos e sociedades locais e regionais, promovendo o desenvolvimento simbólico e a transformação social da população jaguarense em especial aos que estão muitas vezes à margem da sociedade. (Marcelino, 2016, p. 28).

Estes aspectos dialogam com o que afirma García Canclini (2005), ao conceituar políticas culturais. Deste modo, os grupos e as organizações identificadas, apesar da fragilidade organizacional e financeira na qual se encontram, hoje eles possuem uma efetiva participação na promoção das políticas culturais nos municípios de Jaguarão/RS e de Arroio Grande/RS.

Vivemos hoje um novo paradigma onde a maior parte da produção cultural advém das organizações que compõem o chamado terceiro setor.

O terceiro setor constitui-se na esfera de atuação pública não-estatal, formado a partir de iniciativas privadas, voluntárias, sem fins lucrativos, no sentido do bem comum. Nesta definição, agregam-se, estatística e conceitualmente, um conjunto altamente diversificado de instituições, no qual incluem-se organizações não governamentais, fundações e institutos empresariais, associações comunitárias, entidades assistenciais e filantrópicas, assim como várias outras instituições sem fins lucrativos (Bndes, 2001, p. 4).

No Brasil, o terceiro setor teve um grande crescimento na década de 90 com a criação das Leis 9.637/1998 (Organizações Sociais - OS) e 9.790/1999 (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP) e mais recentemente com a Lei 13.019/2016 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil - MROSC), todas conhecidas como novos marcos legais do terceiro setor.

A partir da criação dessas leis foram criados novos critérios de classificação das entidades sem fins lucrativos de caráter público, um novo sistema de articulação entre o poder público e as instituições privadas que facilitou o repasse financeiro (Termo de Parceria ou Contrato de Gestão) e a possibilidade de remuneração dos dirigentes que atuam efetivamente na gestão das entidades.

A grande novidade da nova legislação foi a criação da figura jurídica denominada de "Organização da Sociedade Civil de Interesse Público" (OSCIP), que se baseia no sistema de qualificação e certificação, onde as entidades que cumprirem com os diversos requisitos exigidos na legislação, receberão a qualificação como OSCIP do Ministério da Justiça; essa qualificação diferencia as entidades qualificadas das demais existentes e transfere a elas, os benefícios fiscais e administrativos criados pela lei. Conforme o site do Ministério da Justiça, atualmente existe em torno de 6.000 entidades qualificadas como OSCIP no Brasil.

A mais recente legislação MROSC, aperfeiçoou as legislações anteriores e inovou com a criação do Termo de Fomento, caracterizado por instrumentalizar as ações que partem do Poder Público e o Termo de Colaboração, instrumento que regerá as ações fomentadas pela sociedade civil. As criações destas leis fortaleceram as parcerias entre o poder público e o chamado terceiro setor, à medida que criaram um espaço público não estatal, consolidaram o fomento da contratualização e criaram um sistema de gestão pública não estatal.

Com o objetivo central de suprir as deficiências não atendidas pelo Estado, o terceiro setor tem hoje uma grande atuação em nossa sociedade; podemos até dizer que há, atualmente, uma substituição das funções do Estado pelas organizações sem fins lucrativos, decorrentes muitas vezes das dificuldades que o poder público encontra para efetuar a prestação dos serviços públicos por conta da rigidez da estrutura de sua administração.

A área cultural também está repleta de entidades fazedoras de cultura, segundo Teixeira Coelho:

Complexo de relações formais e informais que regem o sistema de produção cultural. Envolve instituições culturais, formações culturais, movimentos ou escolas, criadores individualmente considerados, receptores da cultura, normas jurídicas, organismos econômicos, instituições de ensino e pesquisa, corpos doutrinários etc., o que tem por consequência uma multiplicidade de abordagens diferentes do fenômeno cultural, de modo amplo, e da política cultural, de modo específico (Coelho Neto, 1997, p. 283).

O Estado a cada dia mais se aproxima de uma chamada privatização da cultura, privatização não no sentido literal de repassar para a lógica de mercado as políticas culturais, mas privatização baseada no repasse ou na outorga das políticas culturais para as entidades privadas que promovem a cultura; as entidades que trabalham diretamente com a produção cultural veem positivamente essa forma de atuação do Estado porque representa um maior sustento das organizações culturais e gera mais empregos e renda para os atores sociais do mercado cultural, que são as pessoas que trabalham e que participam da gestão e da atuação dessas entidades, que têm um papel fundamental no campo da produção cultural, sendo esses responsáveis por gerir toda a máquina que, conforme já dissemos anteriormente, são as maiores provedoras atuais das políticas culturais, seja na área da criação seja na promoção destas.

O Poder Público em todas as esferas é o maior contratador das organizações culturais, ele é quem subvenciona suas ações e é o seu maior investidor. Enxergamos, a partir deste panorama, uma dependência constante do terceiro setor para com o primeiro setor; se o Estado deixar de subvencionar as ações das entidades culturais uma grande parcela da sociedade vai sair perdendo, até mesmo o próprio Estado estará se contradizendo, pois o mesmo não dispõe de infraestrutura física e de recursos humano suficiente para gerir toda a máquina da produção cultural existente atualmente.

Segundo Elizabeth Ponte "[...]São Paulo foi radical: Atualmente, todos os espaços e os programas da Secretaria de Cultura estão sob a gestão de OSs" (Ponte, 2012, p. 78). Os estados e os municípios têm cada vez mais regulamentado as parcerias com as organizações sociais, propiciando assim a terceirização da cultura em todos os entes federados principalmente nas áreas de gestão de espaços culturais, projetos de formação ou de difusão artística e os corpos artísticos ou estáveis. Em grande parte, a gestão é facilitada no que tange as contratações internacionais, turnês, direitos autorais etc. Temos como exemplo na cidade de Curitiba, a parceria entre a prefeitura e uma organização social na gestão da área musical da Fundação Cultural de Curitiba, gestão que inclui a administração da Camerata Antiqua de Curitiba e de quatro outros grupos musicais.

As organizações sociais têm um papel importante também no que tange à gestão de festivais artísticos; na região mapeada, em ambas as cidades, elas são as responsáveis pela gestão do carnaval, pela promoção da Semana da Consciência Negra e da Semana da Diversidade Sexual no município de Jaguarão, bem como na promoção e na produção das feiras gastronômicas e demais atividades artísticas e culturais em ambos os municípios. O poder público ao firmar convênios com as organizações percebe talvez como principais benefícios, a exoneração da sua folha de pagamento, a contratação de pessoal qualificado para as ações e a dispensa do processo licitatório.

Esse modelo de gestão cultural não estatal foi e é alvo de muitas críticas. Em 1997, foi aberta uma Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Partido dos Trabalhadores e pelo Partido Democrático Trabalhista, que questionava a transferência de atividades públicas sem licitações; no Rio de Janeiro, a Associação de Servidores da Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio (FUNARJ) e de artistas ligados ao Theatro Municipal foram contra um projeto de lei que autorizava o estado a repassar a gestão de diversos órgãos para organizações sociais; eles alegavam que o Estado se esquivava das suas funções políticas, ao privatizar a cultura no estado. No Rio Grande do Sul, também foi conturbada a aprovação da lei n° 12.091/08, que regulamenta as parcerias com as OSCIPs em âmbito estadual; servidores da TVE-RS fizeram um abaixo assinado opondo-se à aprovação do projeto por considerarem que a lei ao ser aprovada, possibilitaria ao governo a mudança do status da emissora, alegando a privatização da mesma.

As questões que permeiam as transferências das ações culturais do Estado para as entidades culturais são diversas, vão desde o discurso da privatização dos espaços culturais e do abandono do Estado de suas funções em relação à cultura, o medo da perda dos direitos trabalhistas, dos benefícios e da estabilidade do emprego público. É preciso avaliar a amplidão dos benefícios da gestão não estatal dos programas e das políticas culturais, quais são as suas parcerias e como elas são disciplinadas.

Conclusões

A partir de todas as discussões colocadas em evidências no decorrer deste artigo, pode-se perceber e concluir que o Estado Nacional sempre fomentará a unidade entre os povos como uma nação de identidade única, sob a argumentação de que para fortalecer o Estado, deve-se ter uma identificação única na sociedade, pois ao se fragmentar a sociedade em grupos étnicos, culturais, ocorrerão rupturas na identidade nacional e provocarão desequilíbrios na cultura política liberal adotada pelo Estados Nacional.

Ao contrário do que ocorre na base da sociedade, a região que se trata a pesquisa é uma região onde existem pessoas de diversos lugares e com costumes distintos, seja por conta da sua localização fronteiriça, seja pela grande movimentação sociocultural entre as regiões, onde tradicionalmente ocorrem casamentos e uniões binacionais, com a mescla da cultura uruguaia com a brasileira e por consequência, a aculturação de ambas as partes e também pela forte imigração ocorrida durante o século XIX.

Nesse sentido, conforme a análise dos dados, pode-se dizer que as organizações da sociedade civil são consideradas como principais ferramentas vivas de socialização e de integração sociocultural entre os diversos grupos que coexistem na localidade pois, como demonstrado acima, os projetos e os programas executados por essas são resultados deste processo de multiculturalização, onde eles atuam com grande número de atores sociais, onde cada qual agrega os seus costumes e as suas tradições.

As ações fomentadas pelas organizações sociais nos municípios pesquisados são caracterizadas muitas vezes como a única espécie de políticas culturais para aquelas comunidades abrangidas por essas atividades, o que se justifica por um lado, por não haver interesse do Estado em promover políticas públicas que fomentem a integração cultural na região fronteiriça, pois essa integração se contrapõe às questões de identidade nacional, no qual a permanência é de total interesse do Estado.

Cabe então a essas organizações sociais a função de fomentar de fato a integração cultural de base dentro das comunidades, principalmente periféricas, na região foco da pesquisa, com ou sem o aporte financeiro e logístico do Poder Público e muitas contrários às estratégias de manutenção do Estado Nacional.

A partir destes dados, poderão ser pesquisados ainda outros fatores que envolvem a sociedade civil organizada nas políticas culturais, tais como: o papel destas organizações no desenvolvimento da integração cultural em zonas de fronteira; a importância e até que ponto as organizações e os grupos influem no dia-a-dia das comunidades onde estão localizadas; e, se esses fatos identificados nessa pesquisa são encontrados no Uruguai, país vizinho da região estudada, por meio de pesquisas comparadas.

Cabe ressaltar que o projeto foi financiado com recursos do Governo do Estado do Rio Grande do Sul por meio do Fundo de Apoio à Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura.