Año 5, número 9, julio-diciembre 2020
Mário de Andrade, Aloísio Magalhães e Gilberto Gil: três Macunaímas na política cultural 1
Mario de Andrade, Aloísio Magalhães, Gilberto Gil: tres macunaímas en la política cultural
Mário de Andrade, Aloísio Magalhães, Gilberto Gil: three macunaímas in the cultural policy
Luiz Augusto Fernandes Rodrigues 2
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Deborah Rebello Lima 3
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
O texto tece aproximações entre as gestões de Mário de Andrade (1935-1938), Aloísio Magalhães (1981-1982), e Gilberto Gil (2003-2008) como titulares em órgãos da gestão pública de cultura no Brasil. O objetivo é observar possíveis semelhanças e diálogos entre três experiencias de gestão cultural paradigmáticas no histórico brasileiro. Por meio da análise da estrutura dos respectivos órgãos, assim como de algumas linhas programáticas norteadoras das políticas delineadas por esses três gestores públicos de cultura, é possível perceber pontos em comum nas abordagens que primam pelo olhar antropológico para a cultura e pela resistência para a continuidade de práticas no setor. Além de poderem ser considerados fundamentais mecanismos na construção/sedimentação de valores identitários e cidadãos.
Palavras-chave
Identidade; políticas públicas de cultura; gestores de políticas culturais.
Resumen
El texto teje aproximaciones entre las ideas que marcaron las administraciones de Mário de Andrade (1935-1938), Aloísio Magalhães (1981-1982) y Gilberto Gil (2003-2008) como titulares en los organismos públicos de gestión cultural en Brasil. La investigación, hasta la fecha, se ha centrado en la observación de la estructuración de los órganos respectivos, así como en algunas líneas programáticas que guían las políticas buscadas por estos tres gestores públicos de la cultura y su importancia en la construcción/sedimentación de los valores identitarios y ciudadanos.
Palabras clave
Identidad; políticas públicas culturales; gestores de políticas culturales.
Abstract
The text brings approximations between ideas that marked the administrations of Mário de Andrade (1935-1938), AloísioMagalhães (1981-1982), and Gilberto Gil (2003-2008) as holders in public management institutions of culture in Brazil. The research, to date, has focused on observing the structuring of the respective organs, as well as some programmatic lines guiding the policies sought by these three public managers of culture and their importance in the construction/sedimentation of identity values and citizenship.
Keywords
Identity; cultural public policies; cultural policy makers.
DOI: https://doi.org/10.32870/cor.a5n9.7359
[Recibido: 21/10/2019; aceptado para su publicación: 1/6/2020]
Introdução: Macunaíma e a identidade
Antonio Cândido tece como “dialética da malandragem, o confronto dialético da ordem e da desordem. Na sociedade brasileira essas questões são mesmo dialéticas” (1993, p. 19-54). Eis alguns sinônimos que o Dicionário Aurélio nos apresenta: Herói: homem extraordinário pelo seu valor; Anti-Herói: por formação morfológica, é o contrário daquele; Malandro: esperto, matreiro, que não trabalha, preguiçoso. Completo com as definições apresentadas por Josué Montello (Jornal do Brasil, “Salvo melhor juízo”): “enquanto o herói se bate pelos valores da sociedade em que vive, e a esta naturalmente se ajusta, o anti-herói se defende desses valores, com os quais está em permanente conflito” (De Holanda Ferreira, 2014).
Quais são, então, os valores da sociedade brasileira? Quem são nossos heróis e nossos anti-heróis? Mário de Andrade apontou o malandro, signo do anti-herói, como o herói. Sem caráter. Pode-se ler “o herói sem caráter” num duplo sentido (Fernandes Rodrigues, 2010):
Seguindo a tese lacaniana poderíamos mesmo dizer que a onipotência do herói, a falta de limites, aponta a ausência da interdição gerada pela figura do pai, e que sem ela não alcançamos a dimensão simbólica necessária à construção da subjetividade. Somos de fato heróis sem caráter. Malandros sem identidade própria (Fernandes Rodrigues, 2010).
No Brasil, as pessoas “nunca tiveram a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência” (Cândido, 1993, pp. 50-51). É esta a tese do autor da dialética da malandragem, dialética da ordem e da desordem. “Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em conseqüência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência” (Cândido, 1993, p. 51).
Nossa fraca identidade potencializa a formação de uma identidade não muito rigorosa. Podemos ler estas ideias de diversas formas. A saída positiva para o dilema brasileiro encontra-se, justamente, na ambiguidade da sua situação negativa, na pregnância dialética dos contrários. É como a trajetória na obra Macunaíma: enquanto nosso “herói sem nenhum caráter”, que é malandro, mas que é herói, se “coloca acima do bem e do mal e vai tirando proveito máximo de tudo, o narrador vai revelando as tradições do nativo brasileiro na tentativa de tecer nosso caráter. Grande Mário de Andrade” (Fernandes Rodrigues, 2010).
Juntemos a tais princípios, algumas ideias e entendimentos sobre cultura nos últimos séculos: os do século XIX e sua divisão entre folclore e alta cultura; os da indústria cultural em meados do século XX e a popularização e massificação da cultura; os do final do século XX, mais ligados aos movimentos sociais e à busca de conquista por direitos: à cidade, à criação artístico-cultural, à diversidade, ao planejamento, etc.
O uruguaio Hugo Achugar (2006) busca repensar no valor da produção cultural em alguns contextos decoloniais, e o caráter múltiplo que marca “a identidade híbrida do latino-americano. A questão da identidade é permeada, segundo Achugar, pela discussão entre posição e localização de quem pronuncia o discurso”.
O intuito deste debate é transpor esta analogia de herói e anti-herói para problematizar o papel de gestores culturais e seus entremeios políticos de gestão operados no país. Por meio da observação de algumas características de gestão ofertadas pelo período de Mário de Andrade no Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, de Aloísio Magalhães como gestor a frente da Secretaria de Cultura durante a ditadura civil-militar no país e Gilberto Gil, à frente do Ministério da Cultura, já em contextos democráticos. O que se segue são reflexões de uma pesquisa em início de percurso que busca tecer correlações entre três momentos e três gestores de políticas públicas de cultura no Brasil que buscaram fortalecer traços identitários de caráter plural, inclusivo e cidadão, buscando dar voz e vez a novos e diversos sujeitos sociais, promovendo maior participação na criação, na fruição e no planejamento de ações em cultura.
Apresenta-se um esforço de problematizar o lugar das frestas políticas, dos antagonismos, das releituras e reinvenções. Uma pesquisa que busca contribuir no debate sobre o histórico das políticas públicas de cultura no país por meio de seus agentes, das marcas conceituais e de possíveis correlações (propositais ou não). Assim como o personagem Macunaíma, esses gestores contribuíram para o fortalecimento da construção identitária brasileira, para o fortalecimento de acesso a diferentes etapas da criação cultural −da criação/idealização/produção à fruição−, buscando garantir formas amplas de participação da sociedade na vida e no planejamento cultural. Destaque-se, também, que se trata de três artistas (o poeta e romancista Mário de Andrade, o designer Aloísio Magalhães e o músico Gilberto Gil) que deixaram marcas de aproximação entre arte e política, e trilharam caminhos que se aproximam do que Victor Vich (2014) chamou de desculturizar a cultura, propondo com isso “posicionar a la cultura como un agente de transformación social y revelar las dimensiones culturales de fenómenos aparentemente no culturales” (p. 85).
Nas páginas que seguem, apresentamos algumas descrições e reflexões sobre os três gestores em seus tempos e as institucionalidades criadas, correlacionando: 1) A gestão Mário de Andrade como momento de inauguração de políticas culturais públicas de maneira mais sistêmica, com investimentos públicos neste setor apresentados de forma organizada; 2) A gestão de Aloísio Magalhães tendo representado momento de resistência, considerando que este gestor ocupou a pasta cultural num momento de endurecimento governamental e buscou, politicamente, defender a importância da existência de políticas públicas de cultura no país; 3) A gestão Gilberto Gil ocupou o lugar de reinvenção e redefinição do papel do estado no setor de cultura, saindo de abordagens anteriores focadas no dirigismo ou na completa ausência.
Ações nos tempos de Mário de Andrade - Inauguração. Diversidade cultural
Mesmo antes da concepção andradiana de que o Departamento de Cultura e Recreação abarcaria toda e qualquer manifestação de cultura, voltemos à trajetória de Mário.
Em finais dos anos 1920 Mário de Andrade empreendeu viagens pelo norte e nordeste brasileiros para conhecer nossas identidades culturais: de maio a agosto de 1927 viajou ao Norte; de fins de 1928 a fevereiro de 1929 viajou pelo Nordeste. No Prefácio Interessantíssimo (Andrade, 2016), texto meio sério meio a brincar, Mário justifica que as viagens etnográficas deste “turista aprendiz” articulam o erudito e o popular.
Como argumenta Salete Serino:
Contemporaneamente, no contexto das Ciências Humanas, a concepção de Política Cultural é definida como práticas e diretrizes que vão marcar a produção, a organização cultural dentro da sociedade, na qual o embate político-ideológico é constante. Ou seja, sendo a cultura um conjunto de práticas, ideias e sentimentos simbólicos do homem com a realidade, a política com o propósito de organização, precisaria criar mecanismos com vistas à promoção tanto das manifestações artísticas e culturais quanto da democratização de acesso destas. Dessa forma, torna-se possível a argumentação de que as ações de Mário de Andrade no Movimento Modernista Brasileiro, no Departamento de Cultura de São Paulo, e, em especial, nas intenções etnográficas de suas viagens ao Norte e Nordeste –presentes no livro O Turista Aprendiz–, o tornariam um político cultural (2012, p. 203).
O “compromisso” intelectual de Mário de Andrade com a diversidade cultural nacional já fora demonstrado mesmo antes da criação do Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo em 1935. Este projeto anterior em muito se adequou às demandas políticas de então. Como apontou Helena Bomeny (2012), a criação do Departamento pelo prefeito Fábio Prado teve como suporte político o objetivo de fortalecer ao grupo político paulista que tinha aspiração à presidência do país. Os políticos liderados por Armando de Sales Oliveira formularam um projeto nacional com destaque na educação e na cultura.
A passagem de Mário de Andrade pelo órgão foi movida por objetivos amplos como democratizar e fortalecer a cultura, a educação e a recreação. Mesmo assim, a falta de apoio recebida fez o gestor sair do Departamento em 1938, época em que se mudou para o Rio de Janeiro. As ligações de Mário de Andrade e de outros modernistas com o ministro Gustavo Capanema permitiram ações de Mário junto ao Instituto Nacional do Livro (INL) e ao Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Em 1941 o paulista nascido em 1893 sob o nome Mário Raul de Moraes Andrade foi designado por Capanema para cargo no SPHAN e retornou a São Paulo, onde viveu até sua morte em 1945.
Eixos transversais na gestão inaugural
Muitas ações e preocupações da gestão de Mário de Andrade nos remetem a conjunturas mais atuais de algumas políticas públicas de cultura em escala nacional.
O Regulamento do Departamento de Cultura criado por Mário de Andrade ilustra alguns pontos consoantes com uma noção ampla de política pública de cultura, logicamente guardadas as devidas proporções de acionamentos realizados em distintas temporalidades. Vejamos alguns trechos referentes à criação de sua estrutura (grifos do original; manteve-se a grafia original do documento):
Art. 1. O Departamento de Cultura é um órgão destinado a criar, desenvolver e proteger quaisquer manifestações que interessem à cultura no Município de São Paulo.
Art. 2. O Departamento de Cultura além de sua Diretoria, unidade de serviço representativa e centralizadora que estuda os problemas gerais, constitue-se das seguintes divisões especializadas:
A estrutura departamental proposta por Mário estava focada nas urgências de atuação e em uma perspectiva ampliada da capacidade de atendimento do setor cultural. Naquele contexto, a vinculação do setor com as áreas de Educação, Esporte, Lazer e Turismo davam esta perspectiva de maior amplitude para o setor cultural.
De fato, a experiência andradiana, no cenário macro de reflexão sobre políticas públicas de cultura, representa um pilar essencial: é parte do movimento “inaugurador” do campo. Trouxe alguns marcos inovadores que mesmo tendo sido operados em uma gestão municipal, ganharam ressonância nacional. Segundo Albino Rubim:
Sem pretender esgotar suas contribuições, pode-se afirmar que Mário de Andrade inova em: 1. estabelecer uma intervenção estatal sistemática abrangendo diferentes áreas da cultura; 2. pensar a cultura como algo “tão vital como o pão”; 3. propor uma definição ampla de cultura que extrapola as belas artes, sem desconsiderá-las, e que abarca, dentre outras, as culturas populares; 4. assumir o patrimônio não só como material, tangível e possuído pelas elites, mas também como algo imaterial, intangível e pertinente aos diferentes estratos da sociedade; 5. patrocinar duas missões etnográficas às regiões amazônica e nordestina para pesquisar suas populações, deslocadas do eixo dinâmico do país e da sua jurisdição administrativa, mas possuidoras de significativos acervos culturais (modos de vida e de produção, valores sociais, histórias, religiões, lendas, mitos, narrativas, literaturas, músicas, danças, etc.) (Rubim, 2007, p. 15).
A importancia da gestão andradiana pode ser percebida ao propor (dentre inúmeros tópicos) a defesa do investimento em cultura como algo basilar, focando na ampliação a concepção do que deveria ser tratado como prática cultural. Não se pode deixar de lado também a contribuição de Mário de Andrade para a forma de tratamento do patrimônio cultural brasileiro, que esteve bem à frente de sua conjuntura de atuação.
Ações nos tempos de Aloísio Magalhães - Resistência
Diretrizes da política da SEC/MEC
Nascido em Recife em 1927, Aloísio Sérgio Barbosa de Magalhães foi importante designer gráfico brasileiro. Foi secretário do patrimônio histórico nacional e era secretário de cultura do MEC ao falecer em 1982, em Pádua (Itália) quando tomava posse como presidente da Reunião de Ministros de Cultura dos Países Latinos. Aluísio era um político no sentido de articulação e de acreditar no compromisso público para o que seria fundamental ao país, ainda que estivesse operando em um contexto de centralização política. Isaura Botelho (2000) reforça o quanto a habilidade política do gestor foi essencial para o seu trânsito em diversas áreas administrativas e para a necessidade de enfrentamento de questões urgentes para a cultura.
A Secretaria da Cultura do Ministério de Educação e Cultura do Brasil (MEC) foi criada em 1981 pela Portaria nº 274 de 10 de abril pela transformação das Secretarias do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e de Assuntos Culturais, e existiu até 1985, quando foi criando o Ministério da Cultura do Brasil (MinC). Passaremos a tratar o documento interno que estruturou a criação da Secretaria de Cultura (SEC), denominado Diretrizes para operacionalização da política cultural do MEC. Trata-se de uma síntese do Seminário realizado em Brasília de 31 de agosto a 2 de setembro de 1981, que foi, como aponta o próprio documento (1981, p. i), “método de consulta e de estímulo à colaboração entre os diversos organismos englobados pela SEC”. É uma espécie de plano, com “Considerações básicas”, “Princípios para operacionalização”, e “Linhas programáticas”, que passamos a detalhar (Brasil, Mec., 1981, p. 2):
II. Princípios para operacionalização
III. Linhas programáticas
Como aponta Botelho (2000, p. 98), o olhar de Aloísio Magalhães, ainda que de certa maneira reforçasse o que vinha sendo feito por gestores anteriores, colocava mais evidência na necessidade de observar “os múltiplos referenciais brasileiros e redescobrir sua heterogeneidade”. Logicamente, a gestão de Aloísio Magalhães não operava com o conceito de diversidade cultural, mas já reforçava a importância de reconhecer a “heterogeneidade” presente na cultura do país. A descrição acima já nos dá uma prévia sobre a abrangência de entendimento sobre a noção de cultura, o que pode ser enfatizado por palavras do próprio documento (Brasil, Mec., 1981, p. 3):
cultura entendida como todo sistema interdependente e ordenado de atividades humanas na sua dinâmica. Assim, privilegia não só os bens móveis e imóveis impregnados de valor histórico e/ou artístico, mas também toda uma gama importantíssima de comportamentos, de fazeres, de formas de percepção que, por estarem inseridos na dinâmica do cotidiano, não têm sido considerados na formulação das diversas políticas. Cultura, portanto, é vista como o processo global em que não se separam as condições do meio ambiente daquelas do fazer do homem, em que não se deve privilegiar o produto −habitação, templo, artefato, dança, canto, palavra− em detrimento das condições históricas, sócio-econômicas, étnicas e do espaço ecológico em que tal produto se encontra inserido.
O trecho anterior ajuda a compreender as várias transformações pelas quais passaram as políticas públicas de cultura no Brasil. Se formos nos ater aos poucos anos seguintes, teremos em 1985 a criação do Ministério da Cultura (governo José Sarney), extinto em 1990 (governo Collor de Mello) e recriado em 1992 (governo Itamar Franco). O conceito amplo e socialmente justificado de cultura, assim como o entendimento de que tal amplitude carece de ações governamentais amplas e integradas apresentado no documento de 1981 é substituído por seu contrário pouco anos depois: o que tivemos (e já devidamente estudado por vários autores) foi a ausência do Estado na condução das políticas públicas de cultura em favor de princípios econômico-mercadológicos que passaram a vigorar especialmente a partir de 1995 (governo F. H. Cardoso).
No início do século XXI podemos vislumbrar momentos de ruptura com o quadro descrito (que abarca sobretudo os anos 1980 a 2000), apresentando uma nova guinada, desta vez se aproximando −novamente− de perspectivas que viram a cultura e suas políticas públicas de forma ampla, integrada e instituinte de processos diversos e mais socialmente justificados. Aproximações entre propostas do documento de 1981 e políticas posteriores a 2003 (governo Lula da Silva) dizem respeito à necessidade de maior articulação entre as esferas públicas na condução das políticas culturais, questão mais formalmente (e legalmente) estruturada a partir da aprovação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e sua inclusão em 2012 (Artigo 216-A) na Constituição Federal de 1988.
De volta às Diretrizes de 1981 (p. 4): “O mecanismo fundamental dessa diretriz [descentralização] é a articulação dos níveis municipal, estadual e federal, através de efetiva interação de instituições oficiais, entidades privadas e representantes do fazer e do pensamento das comunidades -os legítimos portadores do conhecimento de contextos específicos”.
O que não sinaliza que Aloísio Magalhães fosse um entusiasta da institucionalização do campo cultural por meio da criação de uma pasta exclusiva. Pelo contrário, ele operou resistência à criação do Ministério da Cultura, salientando o quanto era preciso o amadurecimento conceitual do campo, ates da criação de uma institucionalidade exclusiva. Conforme trecho de entrevista concedida pelo gestor na época: “No momento, seria prematuro pensar na criação de um Ministério da Cultura porque, agora, ele seria forçosamente um ministério fraco, não só do ponto de vista financeiro, mas do próprio ponto de vista conceitual” (Magalhães, 1997).
Ainda não temos maturidade suficiente para tratar com precisão as fronteiras entre educação e cultura”. Como também sinaliza Botelho (2000) , o olhar de Aloísio Magalhães é fundamental por se apoiar na noção de bem cultural, reconhecendo toda a dificuldade de conceituação desta categoria. Segundo a autora, a visão abrangente é responsável pela leitura institucional que Aloísio criou do campo, apostando na importância de compreender a cultura como um elemento “multi-institucional”.
Ou seja, mais do que criar uma institucionalidade ministerial forte, era preciso fortalecer a temática em distintos organismos públicos. Esta visão também esteve presente durante a gestão Gil, por meio de outra noção, a visão de “transversalidade da cultura” como mecanismo de fortalecimento de agenda, de campo e de institucionalidade.
As correspondências entre as conjunturas tratadas neste artigo ainda vão além, e vamos seguir traçando paralelos −por ora− entre as proposições da gestão sob a batuta de Aloísio Magalhães com programas e ações do ministro Gilberto Gil. A seguir foram destacados alguns trechos (cujos grifos não são do original e sim da presente argumentação) do item “Princípios para operacionalização” do documento de 1981 (pp. 6-7):
[...]
[...]
É adequado, pois, chamar-se devolução à orientação que deve presidir os trabalhos −desde seu planejamento até a sua execução− buscando reintegrar aos contextos que os possibilitaram, tanto os seus resultados materiais quanto os reflexivos e cuidando para que a participação nestes benefícios seja ampla e democrática. [...]
Finalmente: quem está próximo do bem cultural ou o produz é, verdadeiramente, quem deve cultivá-lo. É preciso, neste sentido, criar canais adequados e formas que assegurem a efetiva participação da comunidade nas decisões e no trato dos problemas afetos à produção e à preservação cultural, de modo a favorecer a preconizada distribuição de responsabilidades entre todos os envolvidos (organismos do poder político, entidades privadas e, sobretudo, a população).
No nosso entendimento é possível tecer correlações com ações pós-2003, como o Programa Cultura Viva, a criação da SID/Secretaria da Diversidade e da Identidade, a busca de ações compensatórias ao alto grau de exclusão em quem vivem determinados setores da sociedade brasileira, a construção de políticas participativas e cidadãs (como conselhos de cultura paritários, etc.). As Diretrizes apontadas naquele início da década de 1980 teriam nos legado muito bons frutos −acreditamos− se suas linhas programáticas tivessem tido vida mais longa. Falava-se de formação, financiamento, participação, sistema de produção, diversidade, fomento aos diferentes fazeres e saberes, das tradições e também das inovações, da busca de uma educação “viva”, da necessidade de sistemas de informações...
Ações nos tempos de Gilberto Gil - Reinvenção
Diversidade cultural
O próprio surgimento do termo Diversidade cultural é bem contemporâneo a esta conjuntura. Embora se possa encontrar as primeiras referências ao termo em publicações da UNESCO de meados da década de 1990, é justamente em 2003 que tais preocupações estão no auge. O Brasil teve importante protagonismo nas discussões internacionais sobre diversidade cultural, e percebe-se tal impacto quando se vê a criação no âmbito do Ministério da Cultura da SID/Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural.
O Brasil passou por uma importante mudança estrutural em sua política federal com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 2002, apresentando uma guinada voltada à consolidação e ampliação dos direitos sociais, entre eles os direitos culturais (já expressos na Constituição Federal de 1988 em seus Artigos 215 e 216). No discurso de posse do ministro Gilberto Gil (2003) já são anunciados os novos entendimentos e valores sobre a noção de cultura:
Cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada objeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Cultura como o sentido de nossos atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. [...] fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta. [...] Se há duas coisas que hoje atraem irresistivelmente a atenção, a inteligência e a sensibilidade internacionais para o Brasil, uma é a Amazônia, com a sua biodiversidade e a outra é a cultura brasileira, com a sua semiodiversidade. O Brasil aparece aqui, com as suas diásporas e as suas misturas, como um emissor de mensagens novas, no contexto da globalização (Gil, 2003, s.p.).
As palavras proferidas no discurso de posse de Gilberto Gil como Ministro de Estado da Cultura já nos alertavam sobre alguns pontos que norteariam sua gestão, em especial sobre a centralidade e transversalidade da cultura. A própria reestruturação das Secretarias do Ministério da Cultura a partir de 2003 nos ilustram sobre as rupturas na concepção de Cultura que passaram a nortear as políticas federais brasileiras, como passaremos a tratar.
O decreto 4889 de 20 de novembro de 2003 renomeou a Secretaria do Audiovisual para Secretaria para o Desenvolvimento das Artes Audiovisuais e substituiu as secretarias do Livro e Leitura; do Patrimônio; Museus e Artes Plásticas; e de Música e Artes Cênicas pelas secretarias de Formulação e Avaliação de Políticas Culturais; Desenvolvimento de Programas e Projetos Culturais (que depois passou à denominação Secretaria da Cidadania Cultural); Apoio à Preservação da Identidade Cultural; e de Articulação Institucional e de Difusão Cultural. Como apontou Márcio Meira (2004, grifos nossos):
por decreto presidencial, foi feita a primeira etapa de uma reforma da estrutura interna do MinC (...). Essa reforma ampliou os cargos de assessoramento superior e funções gratificadas do Sistema MinC de 670 para 884 (...). Mais do que ampliar os cargos, houve uma mudança de qualidade no redesenho institucional, abolindo os sombreamentos existentes, e alocando o sistema de financiamento numa única Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura. Todas as atividades ‘finalísticas’ foram devolvidas às instituições vinculadas e a administração direta ganhou maior capacidade gerencial e de planejamento estratégico, coerente com os princípios do programa de governo do Presidente Lula, que enfatizava a necessidade do fortalecimento institucional do Ministério, sobretudo dando a ele um caráter de coordenador de uma política pública que garantisse aos cidadãos o direito básico à cultura, ao fortalecimento da identidade nacional e da economia da cultura, numa perspectiva transversal e sistêmica.
Não se trata de denominações, mas sim de uma substituição de foco, de uma ruptura de práticas antes mais assentadas nas linguagens artísticas. Com a nova estrutura, o MinC se abre também a novos atores sociais, e busca tê-los mais como partícipes do que beneficiários das políticas (índios, quilombolas, griôs, sujeitos LGBT etc.), de novos territórios e territorialidades (periferias urbanas, universos digitais, territórios da cultura tradicional e também das inovações, etc.), em busca de articulações também mais amplas e diversas: agentes públicos de outras esferas, agentes comunitários organizados em conselhos e conferências, etc.
Esse novo patamar do Ministério deixou como legado ao menos duas importantes leis que dialogam com premissas trabalhadas neste artigo, a lei 12343, de 2/dez/2010 que aprovou o Plano Nacional de Cultura e estabeleceu o Sistema Nacional de Cultura (Emenda Constitucional 71/2012), e a Política Nacional de Cultura Viva (lei 13018, de 22/jul/2014), reforçando a concepção de que a articulação de agentes diversos e a diversidade cultural precisam ter força de lei.
A gestão iniciada em 2003 buscou enfatizar quais eram suas bases inspiracionais, suas releituras e suas diferenciações ideológicas gritantes. Utilizando como apoio a alegoria do “Do-In antropológico”, proferida no discurso de posse de Gil, a oferta programática que se anunciava ansiava por deixar claro que acolher outras abordagens empreendidas por gestões de políticas culturais anteriores seria entendê-las como parte constituinte da própria cultura. Márcio Meira (2016), um integrante da gestão Gil, sinalizou esta preocupação, o que é possível verificar pelo trecho abaixo:
Um registro importante sobre o debate que conduziu ao programa de cultura da candidatura Lula em 2002 é que ele acolheu, desde o início, as contribuições e perspectivas sobre a formação cultural brasileira (e suas políticas culturais respectivas) que vinham desde o movimento modernista na década de 1920, passando também pelas experiências dos governos Getúlio Vargas, sobretudo de seus legados institucionais nas áreas do patrimônio cultural brasileiro, das abordagens antropológicas pioneiras de Mário de Andrade, do projeto do IPHAN, e mais tarde, já nos anos 1970, das lições de Aloísio Magalhães em relação à noção de “referências culturais”, e nos anos 1980, das contribuições do economista e ex-ministro da Cultura Celso Furtado sobre a visão de desenvolvimento (Meira, 2016, p. 24).
Contudo, para este debate, mais do que este reconhecimento explícito de inspiração e absorção, o dado premente é também ponderar como a noção de cultura nacional, ou mais recentemente, cultura brasileira, estavam marcadas nas três experiências. Se para Mário de Andrade o folclore era a base da brasilidade e pedra fundamental da identidade nacional, para Aloísio Magalhães os bens culturais deveriam ser reconhecidos não por sua matriz estética ou pelo simbolismo de um ideal de cultura específico (geralmente erudita), pois a riqueza seria compreender esta categoria por meio do valor social atribuído a ela.
Para Gilberto Gil, há que se avançar neste debate e perceber as especificidades e os híbridos da cultura brasileira, ressaltando a hiperconexão, a miscigenação e a compreensão de que a cultura popular brasileira é fruto de um caleidoscópio de influencias e matrizes que ilustram a diversidade cultural nacional.
Apontamentos finais - Criar, verbo intransitivo
Iniciamos trazendo uma concepção reflexiva sobre contribuições da obra Macunaíma para a identidade brasileira, argumentando o resgate do conhecimento sobre as tradições como elemento estruturador da formação de identidades. Vida e obra de Mário de Andrade parecem ter transitado entre a racionalidade e a emoção, entre o espontâneo e o rigor racional, a concepção desse poeta sobre a simplicidade do modernismo, e sua espontaneidade programada, “a coexistência irresolvida e fecunda entre o calculado e o espontâneo”.4
Este artigo é fruto de pesquisas ainda em estágio embrionário e por isso se ateve principalmente a apresentar elementos envolvidos na estruturação do Departamento de Cultura e Recreação de São Paulo sob a gestão de Mário de Andrade (1935-1938), das diretrizes para a ação da recém criada Secretaria da Cultura no âmbito do Ministério da Educação e Cultura, em sua gestão inicial com Aloísio Magalhães como titular (1981-1982), e por último a reestruturação das Secretarias do Ministério da Cultura do Brasil na gestão considerada a mais participativa e cidadã até então, tendo como ministro Gilberto Gil (2003-2008).
Nos três casos apresentados e analisados até o momento é possível visualizar este trânsito entre racionalidade e invenção, entre tradição e inovação. Seja por meio da adoção de novas leituras para conceitos já postos, seja por meio de uma postura conciliatória no trato político com o intuito de garantir avanços, seja por meio da arregimentação da sociedade em torno da importância da cultura e de seu impacto cotidiano na vida dos sujeitos.
Os três Macunaímas, como tomamos licença para apresentar este trabalho, configuram um exemplo desta luta política de herói e anti-herói, que batalha contra o status quo de forma inventiva. Experiências de três gestões que, acredita-se, “antropofagicamente” beberam nas experiências anteriores para o melhor delas extrair, aproximando-se do que é possível considerar como abordagens modernistas na construção de políticas públicas de cultura.
Como um possível “saldo” comum a essas três gestões pode-se apontar o estímulo e reconhecimento de novos e complementares repertórios estético-simbólicos envolvendo os mais amplos e diversificados atores sociais, numa espécie de incentivo à criação, sob todo e qualquer aporte. Parafraseando a obra de Mário de Andrade de 1927 Amar, verbo intransitivo, apostamos que criar −na perspectiva desses três gestores− deve ser também um verbo intransitivo: criar com o acento em si mesmo e não em qualquer predicativo que lhe suceda.
Referências bibliográficas
Achugar, H. (2006). Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte, MG: UFMG.
Andrade, M. (1975). Macunaíma - o herói sem nenhum caráter. São Paulo, SP: Martins.
Andrade. M. et al. (2015). Me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura. [organização: Carlos Augusto Calil e Flávio Rodrigo Penteado]. São Paulo, SP: Imprensa Oficial SP.
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CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO
Fernandes Rodrigues, L. A. y Rebello Lima, D. (2020). Mário de Andrade, Aloísio Magalhães e Gilberto Gil: três Macunaímas na política cultural. Córima, Revista de Investigación en Gestión Cultural, 5(9). DOI: 10.32870/cor.a5n9.7359
1 Trabalho apresentado no X Seminário Internacional de Políticas Culturais realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 6 e 9 de maio de 2019.
2 Correo electrónico: luizaugustorodrigues@id.uff.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0583-9641
3 Correo electrónico: deborahrebellolima@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4598-5347
4 Com respeito a essa característica em Mário de Andrade, ver o artigo, do qual foram retiradas as citações, de Antônio Carlos de Brito. "Alegria da casa". Revista Discurso. São Paulo, n. 11, 1980 (revista do Depto. de Filosofia da USP, editada pela Livraria Editora Ciências Humanas, pp. 107-123).